sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Halloween, uma festa inofensiva?

O cristão pode participar dela ou trata-se apenas de uma prática cultural inofensiva?
O Halloween é uma festa comemorada no dia 31 de outubro, véspera do Dia de Todos os Santos. Ela é realizada em grande parte nos países ocidentais, sendo mais forte nos Estados Unidos, para onde foi levada por imigrantes irlandeses em meados do século XIX. Na valorização da cultura americana, especialmente nas escolas de inglês e nos filmes de Hollywood, essa festa tem se espalhado pelo mundo.
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A prática do Halloween vem do povo celta, o qual acreditava que, no último dia do verão (31 de outubro), os espíritos saíam dos cemitérios para tomar posse dos corpos dos vivos, visitar as famílias e levar as pessoas ao mundo dos mortos. Sacerdotes druístas (religião celta) atuavam como médiuns evocando os mortos. Parece que, para espantar esses fantasmas, os celtas tinham o costume de colocar objetos assustadores nas casas, como caveiras, ossos decorados, abóboras enfeitadas entre outros. O termo “Halloween” surge mais tarde, no contato da cultura celta com o Cristianismo. Da contração do termo escocês “Allhallow-eve” (véspera do Dia de Todos os Santos), que era a noite das bruxas, surge o “Halloween”.
É aí que surge a dúvida: hoje essa festa tem algum significado espiritual? O cristão pode participar dela ou trata-se apenas de uma prática cultural inofensiva?
São Paulo diz: “Não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares” (Ef 6,12). O apóstolo também exorta: “Sede sóbrios e vigiai. Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (1Pd 5,8). Embora não os vejamos, os espíritos malignos são seres inteligentes que agem tentando perder as almas. Não os vemos, mas sofremos suas investidas. Isso é Doutrina da Igreja Católica.
Será que uma festa pagã, que praticava um ato abominável por Deus – a evocação dos mortos (Dt 18,10-11) –, enculturada hoje, não tem significado espiritual nenhum? É difícil que não tenha! Mas onde está o maligno nessa brincadeira de criança? Nós não o vemos, assim como não vemos o vírus ebola que começa a apavorar o mundo hoje. Você faria uma festa numa região que pode estar contaminada com esse vírus? Uma doença que pode roubar sua vida temporal? Eu não! Da mesma forma, e com muito mais razão, é questionável envolver-se numa festa que possa nos deixar sujeitos a um “vírus” que pode roubar nossa vida eterna. Na dúvida, eu me resguardo. Bem, mas essa é uma reflexão para quem tem fé católica e procura ser coerente com ela.
Outra pergunta que me faço é se o contato e a identificação com imagens horríveis de bruxas e monstros não tem significado algum na formação dos jovens. Desconsiderando a expressão de um satanismo evidente, mas indo para reflexão mais cultural, aí também não acredito que o Halloween seja tão inofensivo.
O ser humano é chamado a contemplar o belo, porque é manifestação da harmonia de tudo que é bom e verdadeiro. Deus é belo, mas o ser humano tem uma estranha atração pelo mórbido, o oculto e suas expressões naquilo que tem de horrível. Não tenha dúvida que educar uma pessoa humana significa, dentre tantas outras coisas, ensinar a apreciar, valorizar e identificar o belo com o bom. Não seria o Halloween mais uma forma, dentre tantas outras hoje em dia, de roubar a referência do belo, do verdadeiro, do bom e do honesto? Será que o mal e o monstruoso, quando viram brincadeira, são tão inofensivos à cultura e aos valores do ser humano?
Até o “doces ou travessuras” não surgiu de forma muito pura. Parece que sua origem está na época em que os países anglo-saxônicos se tornaram protestantes, e as crianças protestantes iam às casas das famílias católicas, oprimidas pelo governo, impor suas exigências. Em um mundo onde os jovens diariamente curtem nas roupas, nos filmes e nas festas o mórbido das caveiras e dos zumbis, o horrível dos monstros e das bruxas, é fácil entender uma sociedade tão pobre em cultura e tão abundante em violência e promiscuidade. Se a expressão do mal é brincadeira e moda, que mal faz torná-lo coisa séria?
Voltando ao lado religioso, é curioso que o Halloween se avizinhe da festa católica de Todos os Santos. Não parece que alguém, tão incomodado com os santos, resolveu festejar os demônios?
Não se trata de supervalorizar do mal em detrimento do bem. Menos ainda de uma visão puritana das coisas deste mundo. O mundo é maravilhoso, a vida é bela. O cristão precisa saber acolher essa maravilha, valorizar a vida do homem e cultivar a alegria da criança e do jovem. Contudo, para semear a vida e colher a alegria é preciso saber: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Tudo me é permitido, mas eu não me deixarei dominar por coisa alguma” (1Cor 6,12).






Fonte: http://formacao.cancaonova.com/atualidade/sociedade/halloween-uma-festa-inofensiva/

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Eu recebi o que vos transmiti

Um dia, prestaremos contas a Deus do que fizemos com a mensagem que d’Ele mesmo recebemos.


Em qualquer tradição, a fidelidade à mensagem recebida é fundamental, seja em reverência àquele que anuncia a mensagem – e não quer vê-la distorcida ou modificada –, seja em respeito a quem ouve a palavra – e não quer, obviamente, ser enganado. Se não se procede assim, tudo se torna uma brincadeira de “telefone sem fio” e, no final, ao invés de comunicação, edifica-se uma torre de Babel, repleta de erros e confusão.
Ora, tudo isso é muito mais verdadeiro quando se trata da revelação de Deus, “o qual não pode enganar-se nem enganar” [1]. Alguém duvida da grande responsabilidade dos Apóstolos, que receberam de Cristo o encargo de “fazer discípulos entre todas as nações” e ensinar-lhes “a observar tudo o que vos tenho ordenado” [2], sabendo que de sua fidelidade dependia, por assim dizer, a eficácia da visita de Deus ao mundo? Qual também não é o tamanho da missão confiada a todos os cristãos, chamados a “ordenar segundo Deus as realidades temporais e impregnar o mundo com a força do Evangelho” [3]? Em nossas palavras e obras, ou deixamos transparecer o Deus verdadeiro ou exibimos um simulacro, moldado impiedosamente por nossas próprias mãos.
Por isso, hoje, mais do que nunca, as palavras do Apóstolo são importantes: “ Ego enim accepi a Domino quod et tradidi vobis – Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti” [4]. O Papa Bento XVI comenta que, mesmo para São Paulo, “originariamente chamado por Cristo com uma vocação pessoal, (...) conta sobretudo a fidelidade a quanto recebeu. Ele não queria ‘inventar’ um novo cristianismo, por assim dizer ‘paulino’” [5], mas tão somente transmitir aquilo que ele mesmo tinha encontrado. É essa atitude que nos dá “a garantia de que cremos na mensagem originária de Cristo, transmitida pelos Apóstolos” [6].
Este ponto é particularmente importante: da integridade e autenticidade da mensagem passada depende a própria salvação eterna das almas, que encontram em perigo de perder-se por conta de mensageiros infiéis.
Foi com coragem que o Papa Paulo VI denunciou a cultura de morte na encíclica Humanae Vitae, enfrentando uma dura oposição do mundo e de prelados em conluio com o mundo. A sua resposta aos que pretendiam atenuar a doutrina moral da Igreja em favor de certa “abertura” era bem clara:“Não minimizar em nada a doutrina salutar de Cristo é forma de caridade eminente para com as almas” [7].
O santo Papa Pio X também enfrentou dificuldades quando decidiu combater com pulso firme a heresia modernista. Mesmo depois da encíclica Pascendi e da instituição do juramento antimodernista, grande foi a resistência das pessoas, às vezes dentro da própria Igreja.
Um fato significativo com relação a um padre, de nome João Semeria, merece nota. Esse sacerdote, “antes e depois da ‘Pascendi’, mantinha estreita relação com os mais insignes modernistas” e a sua obra “deixava entrever que no seu afecto ao modernismo talvez houvesse uma parte de convicção pessoal”. Conta-se que “Pio X censurou-o um dia, porque ‘tendo recebido tantos dons de Deus para fazer o bem, os empregava em escrever livros não conformes com os ensinamentos da Igreja’. Semeria respondeu que o fazia para pôr a religião ao alcance de todos. O Papa acrescentou: –Alargais as portas para que entrem os que estão de fora, mas entretanto obrigais a sair os que estão dentro” [8].
Não importa que o número de fiéis pareça pequeno, mas que se ensine a verdadeira fé e se evangelize com destemor. Sem proselitismo, pois não se pode trair a Nosso Senhor, trocando-o pelos aplausos do mundo ou por alguns trocados, como fez Judas. Não foi o próprio Cristo quem comparou o Reino dos céus a um “grão de mostarda” [9]?
Além disso, não só o Deus Todo-Poderoso não se engana e não engana a ninguém, como não pode ser enganado. Quando alguém escuta a palavra do Evangelho mas prefere modificá-la e adaptá-la aos seus próprios gostos antes de passá-la adiante, não só está enganando as pessoas, como tentando enganar o próprio Deus. E d’Ele – lembra São Paulo – não se zomba: nolite errare Deus non inridetur [10]. Um dia, todos prestaremos contas a Deus do que fizemos com a mensagem que d’Ele mesmo recebemos.
Por Equipe Christo Nihil Praeponere

Referências

  1. Concílio Vaticano I, Constituição dogmática Dei Filius sobre a fé católica, 24 de abril de 1870:DS 3008
  2. Mt 27, 19.20
  3. Catecismo da Igreja Católica, 929
  4. 1 Cor 11, 23
  5. Audiência Geral, 3 de maio de 2006
  6. Papa Bento XVI, Audiência Geral, 31 de outubro de 2012
  7. Humanae Vitae, 29
  8. José Maria Javierre. Pio X. Editorial Aster: Lisboa, 1959, p. 299
  9. Cf. Mt 13, 31-32
  10. Gl 6, 7
Fonte: https://padrepauloricardo.org/blog/eu-recebi-o-que-vos-transmiti

Direção Espiritual: As provações


A Cruz não é a exceção, é a regra. Não é possível seguir Jesus sem ela.





As dificuldades e os sofrimentos da vida são, em geral, os motivos que levam as pessoas a procurarem uma direção espiritual. Ao sacerdote cabe iluminar com a luz do Evangelho essas situações tão delicadas, procurando dar um sentido para elas.
O famoso terapeuta Viktor Frankl, fundador da Logoterapia, afirmava que o sentido das coisas era fundamental para que se alcance o equilíbrio psíquico e, para isso, citava o filósofo ateu Friedrich Nietzsche que dizia que “o ser humano é capaz de suportar qualquer como, desde que tenha umporquê”.
Sendo assim, é preciso antes de mais nada, entender o significa a provação. Em grego, πειρασμός (peirasmos), é traduzida de duas maneiras: tentação e provação. Ambas possuem o mesmo conteúdo semântico, mas, ao longo do tempo, houve uma diferenciação técnica entre elas. A tentação é usada quando o sujeito é o Diabo, e provação quando o sujeito é Deus. Houve uma mudança de finalidade, como se vê.
O Diabo só tem um objetivo, pelo qual não descansa: fazer com o homem perca a sua alma. Logo, quando o sofrimento tem origem demoníaca, a finalidade é sempre essa: levar o homem para o fogo do inferno, para a morte eterna. Nesse viés, nem sempre é interessante para o Diabo tentar o homem pelo sofrimento, mais fácil é mantê-lo no conforto, usufruindo das benesses da vida material, pois assim estará dando sozinho passos largos rumo ao abismo.
Deus, ao contrário, não tenta o homem, conforme atesta a Sagrada Escritura: “Ninguém, ao ser tentado, deve dizer: ‘É Deus que me tenta’, pois Deus não pode ser tentado pelo mal e tampouco tenta a alguém.” (Tg 1,13) Isso não significa, porém, que Deus não permita que a provação aconteça. Ele tem uma outra finalidade. Ele prova os seus eleitos porque quer ver o amor e a santidade florescerem em seus amigos.
Ensina São Paulo, no famoso Hino da Caridade (ICor 13, 1-13) que se não tiver amor, nada há. O que santifica o homem é o AMOR. Portanto, não é uma questão de rezar ou não rezar, sofrer ou não sofrer, mas sim, de amar ou não amar. E querendo promover o amor, Deus permite as provações.
O exemplo de São Padre Pio é contundente. Ele tinha tentações, promovidas pelo Diabo, a fim de que ele vacilasse em sua fé e se perdesse. As provações, por sua vez, Deus as permitia para fortalecer o santo no amor.
Mas, por que Deus promove o crescimento do amor por meio do sofrimento? Por uma razão muito simples: a Cruz não é a exceção, é a regra. Não é possível seguir Jesus sem ela. “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz, cada dia, e siga-me.” (Lc 9, 23) Portanto, a cruz é a condição para seguir a Cristo.
Sendo assim, por que Deus quis desse modo? Porque no mundo onde reina o egoísmo e o pecado, somente pela purificação (cruz) é possível fazer florescer o amor. “ Sine sanguinis effusione non fit remissio”, ou seja, sem derramamento de sangue não há redenção (Hb 9,22), pois é assim que o amor manifesta a sua verdadeira natureza. Ele é um pacto de sangue, em que se afirma “eu derramo meu sangue, mas não desisto de você”.
Deus quer que o homem cresça em amor até a estatura de Cristo. Muitos cumprem com sua obrigação, realizam tudo com zelo, são bons cristãos, etc., mas são acometidos repentinamente pela vaidade e pela soberba. Acham-se melhores que os demais, pois estão “fazendo tudo certo”. Nesse momento é que Deus entra para “contrariar”, para começar a purificação. E como é Deus que age recebe o nome de purificação passiva.
Importante recordar que no crescimento espiritual existem três fases: 1. purgativa (iniciantes); 2. iluminativa (progredidos); 3. unitiva (perfeitos). Na passagem da primeira para a segunda fase, entra a fase da cruz. É ela que promove a purificação, pois a pessoa já fez tudo que podia sozinha e não é mais capaz de avançar espiritualmente, por isso Deus dá a oportunidade da pessoa progredir e se purificar.
Esse processo é diferente entre as pessoas de vida ativa e contemplativa. Os contemplativos são purificados por meio de aridez espiritual, ou como São João da Cruz chama de “noite escura dos sentidos”. Já nos ativos essa “noite” se manifesta em provações reais: doenças, perseguições, insucesso pastoral, em que Deus permite que ocorram.
A purificação é importante, pois prepara a pessoa para Deus. E ela acontecerá ou nesta vida ou no purgatório, isso é certo. Santo Tomás ensina que a maior das penas nesta terra equivale à menor das penas no purgatório, ou seja, é melhor sofrer aqui do que no purgatório.
O sofrimento deve ser encarado como uma graça, um dom de Deus. O Padre Reginald Garrigou-Lagrange, famoso autor espiritual, ao falar sobre a santificação dos sacerdotes em sua obra “As três vias e as três conversões”, cita o exemplo de um padre francês, muito bem relacionado, que foi caluniado e suspenso injustamente. Diante disso, prostrou-se ante o Cristo crucificado e O louvou, agradecendo pela oportunidade de amá-Lo.
Assim, diante da provação ou da tentação, necessário é refletir sobre o motivo pelo qual Deus está permitindo uma ou outra. E se Ele permite é porque deseja o crescimento espiritual de seus filhos, portanto, só resta ajoelhar-se diante Dele e repetir, como o padre francês: “Meu Deus, que oportunidade maravilhosa de vos amar!”
Fonte: https://padrepauloricardo.org/blog/direcao-espiritual-as-provacoes

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Não existe cristianismo sem cruz

A tentação de apresentar um cristianismo sem cruz revela-se, aos poucos, decepcionante, porque é somente na cruz que se descobre o amor de Deus



A cruz possui um significado inegociável para o cristianismo. É somente por meio do Cristo crucificado que se pode compreender “o poder de Deus” (cf. 1 Cor 1, 24) e a sua ação salvífica entre os homens. Por isso, na pregação evangélica de Jesus, tudo se resume a esta exortação: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (cf. Mt 16, 24). Não se trata de mera retórica, mas da apresentação de um dado incontestável: não há redenção sem cruz. O homem que quiser se salvar, deverá, necessariamente, apegar-se às cruzes do dia a dia, renunciando-se a si mesmo, tal qual o Filho do Homem fez no lenho da salvação.
Após aquele encontro fatídico na estrada para Damasco, São Paulo pôde perscrutar o significado autêntico da renúncia anunciada por Jesus. Viu que a lógica da cruz consiste num abandono confiante no “Evangelho da graça”, o qual nos apresenta a salvação não como prêmio que se conquista por meio de esforços puramente humanos. É dom gratuito; Deus confunde a “sabedoria” humana ao doar-se inteiramente ao homem — “o que é tido como debilidade de Deus é mais forte que os homens” (cf. 1 Cor 1, 24). São Paulo, por sua vez, fazendo frente às tendências de sua época, não deixou de anunciar aos seus interlocutores a “loucura” e o “escândalo” do madeiro santo: “Porque a linguagem da Cruz é loucura para aqueles que se perdem; mas poder de Deus para os que se salvam, isto é, para nós” (cf. 1 Cor 1, 18-23).
Nas pegadas do Apóstolo das gentes, a Igreja sempre procurou incutir na sociedade o necessário e urgente apelo do Crucificado, sobretudo quando estes esforços sofriam oposição da mentalidade pagã e autossuficiente do período. Ela testemunhou pelo derramamento de sangue — tal qual São Pedro, que se deixou crucificar de cabeça para baixo, achando-se indigno de ter uma morte igual à de Jesus —, pela vida abastada e longe das comodidades do mundo — a exemplo dos monges eremitas e dos irmãos e irmãs do Carmelo —, como também pela atualização diária e milagrosa do próprio sacrifício de Jesus, através da celebração da Santa Eucaristia. Em poucas palavras, pode-se dizer que a pregação da Igreja se fundamentou ordinariamente neste pequeno, mas não menos verdadeiro, princípio: “Quando vires uma pobre Cruz de madeira, só, desprezível e sem valor... e sem Crucificado, não esqueças que essa Cruz é a tua Cruz” [1].
Por outro lado, grande e persistente foi a oposição sofrida pelo anúncio do Cristo crucificado ao longo da história. Algo que não surpreende, todavia. Dada a realidade do pecado original, que faz com que os homens tenham os pensamentos do mundo e não os de Deus (cf. Mt 16, 23), o ser humano “é continuamente tentado a desviar o seu olhar do Deus vivo e verdadeiro para o dirigir aos ídolos (cf. 1 Ts 1, 9), trocando ‘a verdade de Deus pela mentira’ (cf. Rm 1, 25)” [2]. De fato, para uma mentalidade submissa àquilo que São João chamava de “concupiscência da carne”, “concupiscência dos olhos” e “soberba da vida”, isto é, os ídolos que o mundo oferece, a cruz pode parecer uma realidade muito pouco atraente e sem sentido [3]. Nestes dois últimos séculos, em que não raras vezes os santos padres tiveram de lidar com propostas subversivas, dentro e fora da Igreja, cuja finalidade principal era substituir o Cristo crucificado por uma concepção cristã praticamente ateia, esse drama se revela ainda mais grave.
É particularmente notório um episódio da luta de Pio XI contra a ideologia nazista. Por ocasião da visita de Hitler a Roma, tendo se espalhado, a pedido de Mussolini, as suásticas do nacional-socialismo por toda a cidade eterna, o Papa Ratti ordenou que nenhuma bandeira fosse exposta nas sacadas do Vaticano, foi para Castel Gandolfo, e mandou escrever no L’Osservatore Romano que o ar de Roma estava irrespirável e que a ele não agradava nem um pouco ficar num lugar onde havia uma cruz que não era a de Cristo. Algo semelhante ocorreu com João Paulo II, quando da sua viagem à Nicarágua, em 1983. O governo sandinista, apoiado por padres ligados à Teologia da Libertação, havia organizado um infeliz protesto contra o papa. Na missa campal, foram colocados no altar, de propósito, cartazes de guerrilheiros em vez do crucifixo. O então secretário pessoal do santo papa, Cardeal Stanislaw Dziwisz, conta em suas memórias [4]:
[...] O Santo Padre, praticamente sozinho, enfrentou o tumulto e fez frente aos provocadores. Foi inesquecível a cena em que os sandinistas agitavam suas bandeiras rubro-negras, enquanto ele, de cima do palco, opunha-se a eles, levantando na direção do céu o báculo com o crucifixo na ponta.
Também dentro da Igreja esses confrontos contra a cruz de Cristo não faltaram. Nas sessões do Concílio Vaticano II, infelizmente, muitos foram os que sugeriram o abandono do sinal da cruz durante a liturgia, por este supostamente já não mais corresponder ao espírito do homem moderno [5]. Nas universidades de teologia, por sua vez, “a maneira blasfema como então se zombava da cruz como sendo um sadomasoquismo” era de se lamentar [6]. O então padre Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, escreve a respeito: “Vi o rosto horrível, sem disfarce, dessa piedade ateia; vi o terror psicológico, desenfreado, com o qual se conseguia sacrificar toda consideração moral como restante de um espírito burguês, quando se tratava da meta ideológica” [7].
Como nos tempos de São Paulo, a sociedade moderna não é simpática à mensagem da cruz de Cristo. Ao contrário, há certamente aquele número de indivíduos que, ludibriados pelas promessas ideológicas, depositam a própria esperança em obras e esforços humanos, a fim de alcançar um paraíso aqui na terra. É a tentação do neopelagianismo. Mutatis mutandis, como também não pensar nos “profetas” da técnica, verdadeiros gurus do modernismo, que, “fiando-se demasiadamente nas descobertas atuais”, julgam desnecessária a mensagem evangélica, dando margem ao ceticismo e ao agnosticismo [8]? And last, but not least, que dizer das seitas e heresias que proliferam, fazendo com que o cristianismo e, por conseguinte, a Igreja deixem de ser a Mater et Magistra da sociedade, como gostava de definir São João XXIII, para se converter em uma mera instituição filantrópica ou sentimentalista?
A Igreja deve seguir o caminho do Esposo. Renegar a cruz seria como que um adultério. A tentação de apresentar um cristianismo sem cruz, no intuito de satisfazer o gosto da clientela, aos poucos, mostra-se frustrante. Sem o Cristo crucificado se perde o dom gratuito do Pai que, amando o mundo de tal maneira, entrega Seu Filho único em holocausto. É nisto que conhecemos o amor. Não há mensagem mais urgente, mais necessária, mais imprescindível para o homem que a mensagem do amor de Deus. Nenhum esforço humano, nenhuma sabedoria humana, nenhuma teologia da “libertação” ou da “prosperidade” é realmente capaz de libertar o homem e fazer com que ele progrida na santidade. É Cristo crucificado que nos traz a redenção, porque foi para isto que Ele se manifestou: “para destruir as obras do demônio” (cf. 1 Jo 3, 8).
É, pois, na morte crucificada que se encontra a verdadeira vida.
Por Christo Nihil Praeponere

Referências:

  1. Caminho, n. 178.
  2. João Paulo II, Carta Enc. Veritatis Splendor (6 de agosto de 1993), n. 1
  3. cf. 1 Jo 2, 16
  4. SVIDERCOSCHI; DZIWISZ; Gian Franco, Stanislaw. Uma vida com Karol. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, pág. 109.
  5. WILTGEN, Ralph. O Reno se lança no Tibre— O Concílio desconhecido. Niterói: Permanência, 2007, pág. 43.
  6. RATZINGER, Joseph. Lembranças da minha vida. São Paulo: Paulinas, 2007, pág. 118.
  7. Ibidem
  8. Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et spes (7 de dezembro de 1965), n. 57
Fonte: https://padrepauloricardo.org/blog/nao-existe-cristianismo-sem-cruz